29.9.06

A Peste da Ignorância


Ao aproximar-me do final da leitura d’A Peste, de Albert Camus, incomoda-me algo que de igual forma me tinha atormentado há muitos anos, ao ler O Estrangeiro, e que bem mais recentemente voltou aquando da releitura do mesmo livro. Por muito que aprecie (e aprecio) o estilo, a escrita aparentemente simples, a humanidade singela, as digressões filosófico-existencialistas; não consigo deixar de ter a irritante sensação de que algo me escapa. E tenho certeza que escapa mesmo. Há mais qualquer coisa, oculta sob as camadas que me são perceptíveis e que, por minha manifesta inépcia, não consigo compreender, nem tão pouco perceber-lhe os contornos. Não tenho contexto existencialista, nunca li Sartre nem Beauvoir, tenho com sucesso conseguido esquivar-me a conhecer qualquer rudimento da sua cartilha filosófica e literária. Mas apetece-me ler Camus. E leio. Tenho vontade de gostar de Camus. E gosto. Gostaria de compreender Camus. E não compreendo.
É possível que me esteja a esforçar demasiado, é possível que o mais sensato seja limitar-me à fruição das palavras por si próprias e pelo que me oferecem… mas manifesto a minha ignorância impotente.

A gravura que ilustra esta curta prosa foi a primeira encontrada pelo incansável Google quando se lançou em busca de uma foto com “Camus” como palavra chave. O facto de me ter saído na rifa este senhor de porte marcial alegra-me na medida em que prova que não sou o único a estar equivocado quanto a quem era, de facto, Albert Camus…

26.9.06

She Wants to Move

She Wants to Move, N*E*R*D ao vivo no Saturday Night Live

Agora que está aí o album a solo de Pharrell Williams, com soul a mais e criatividade a menos, vale a pena recordar os N*E*R*D e tempos bem mais inspirados... pelo menos com Chad Hugo ainda por perto.

18.9.06

Eva Braun


Esta é a Eva Braun. A Eva vive em minha casa, ou melhor, vive numa gaiola situada em minha casa, um enclave que está situado no meu território tal como a Cidade do Vaticano se encontra incrustada em Roma. Esta é uma comparação inocente e meramente explicativa, uma vez que nem eu quero arvorar o meu humilde casebre em cidade eterna, nem a Eva possui aspirações ao sumo-pontificado.
Aliás, penso que a Eva Braun a nada mais aspira do que a continuar a ser uma digna roedora, e a levar a vida pacata e regrada de que neste momento goza. Pacata porque a ocupa maioritariamente em actividades com elevado nível de popularidade entre os hamsters: dormir, trepar intrepidamente as barras da sua gaiola apalaçada de quatro andares, dormir, petiscar, dormir, correr numa roda sem objectivo aparente, dormir, desentorpecer as pernitas em sprints pela casa quando tal lhe é permitido e, ocasionalmente, dormir. Regrada porque optou pela alimentação vegetariana, e delicia-se com legumes, cereais, frutas e as menos frequentes guloseimas e queijo.
Pessoalmente, planeio continuar a observar atentamente esta criaturinha, porque a sua permanente indolência despreocupada me convenceu de que a Eva Braun sabe alguma coisa que eu não sei.

15.9.06

O Dom de Ser Casmurro

Dom Casmurro, de Machado de Assis
Forçando um pouco a nota, e querendo armar ao pingarelho, que geralmente quero, diria que Machado de Assis (o senhor de ar austero na foto) teria, ele próprio, algo de casmurro. Tal supõe a curta polémica que manteve com Eça de Queirós a propósito da ausência de denúncia deste último da suposta transgressão moral n’ O Crime do Padre Amaro. Apesar do devaneio aberrante de querer impor moralismos normativos na arte literária alheia, o homem exercia a sua casmurrice com uma genialidade invulgar e uma ambiguidade moral contraditória da questiúncula queirosiana. Neste Dom Casmurro, espécie de tratado do ciúme de apreciação subjectiva, nunca explicado e avesso a esclarecimentos, é mais uma vez a facilidade coloquial da escrita que me impressiona. Aliar um interpelar permanentemente tuteante do leitor a uma imensa profundidade espiritual e imagética não está ao alcance de qualquer um: exige um domínio de mestre de uma língua, e Assis tem-no sobre a portuguesa. A estrutura de capítulos minúsculos introduzidos num título que conduz e delimita a leitura garantem um ritmo incomum, a leitura torna-se fácil, o livro cola-se às mãos e o traseiro ao sofá.

10.9.06

Venha a nós a Vossa borla

Dando continuidade ao meu ritual habitual que ajuda a estruturar-me os sábados, dirigi-me a hora madrugadora, algures entre o meio-dia e a hora de almoço, à minha costumada papelaria para comprar o meu estereotipado Expresso. Nada de estereotipado ou costumeiro teve, no entanto, a notícia de que o arauto das notícias estava esgotado. E a visita a alguns espaços de alternativa emergente só me convenceram de que não existia papelaria, quiosque, banca, café, livraria, tabacaria ou proctologista que não tivesse sido assolado por esta surpreendente febre aquisitiva do meu pasquim que, coitado, normalmente se limita a definhar pelas prateleiras até quarta ou quinta-feira, amortalhado em sacos e em desprezo, dando-se ares de mono invendável. Mas a explicação pressurosa de uma prestável quiosqueira esclareceu o mistério e iluminou-me a vetusta memória: é que havia uma ofertazinha…
Ora aí está! Bem pode o Expresso ser ignorado semana após semana e ver a tiragem ingloriamente devolvida, que um dvd oferecido à laia de isco resgata-o do esquecimento e provoca verdadeiras invasões de energúmenos que se acotovelam e urram, atropelam e grunhem, para ter qualquer coisa de borla. Não interessa o quê, desde que não custe um cêntimo. Pode ser um filme, pode ser uma malga de sopa de lentilhas, não interessa se nunca se ouviu falar em Lost in Translation, e que importa que se pense que Sofia Coppola é uma corista da Rafaela Carrá? O que realmente eleva o vulgo é ter a borla que alarvemente se cobiça, mesmo que depois termine a fazer companhia aos restos da salada de orelha no caixote do lixo, porque o filme é uma seca, porque nenhum carro explode, porque nenhuma maminha se passeia ao léu.
E eu, que nem estava minimamente interessado na oferta (na atençãozinha, eufemismo tão português), porque gosto suficientemente do filme para não ter precisado de esperar por uma borla para o adquirir, eu que só queria folhear tranquilamente o periódico ao solinho de sábado… cambadadebabuínossemianalfabetoseexecráveis.

8.9.06

The Hot Spot

Desmistifique-se de uma vez por todas a ideia peregrina de que o calor é agradável, é estimulante, é giro. Trata-se de uma teoria de tal forma enraizada no imaginário de virtualmente toda a gente, que nada gera maior unanimidade satisfeita em conversas de circunstância do que um atempadamente atirado: "Este fim de semana vai estar mais quentinho."
Não. O calor não é bom, não cura doenças, não é nosso amigo e deve ser encarado com as maiores reservas, se não mesmo desconfiança, se não mesmo repulsa.
O calor é invasivo, persegue-nos incessantemente para todo o lado com um atrevimento obsceno, ao contrário do modesto frio, que fica respeitosamente à nossa porta quando a tal o convidamos.
O calor é inestético, e tem nos menos afortunados o efeito vagamente bizarro de lhes espalhar manchas livído-avermelhadas pela fronha. Não é bonito de se ver.
O calor é peganhento, obriga perversamente a que o suor se insinue por todos os poros, pregas e orifícios, e transpirar é, por excelência, algo que se deseja que apenas aconteça em circunstâncias especiais, por louváveis motivos, e nunca em público (urge, a propósito, combater a turba ululante que se esfalfa a fazer desporto em público, assustando arbitrariamente idosos e criancinhas de mama).
O calor é odorífero, e a este respeito contentar-me-ei em afirmar que todos os dias de Verão me congratulo por não ter transportes públicos a martirizarem-me a existência.
E é por isto que somos Terceiro-Mundo. Porque está demasiado calor para podermos ser outra coisa qualquer. Porque não é só o calor que gera a modorra, é a própria inactividade que chama em igual medida a canícula e as mosquinhas e gera este ciclo vicioso. E tórrido. Arizoniano. Lutemos pela bênção de uma temperatura de gente civilizada.

7.9.06

A Maçã Tradicional

The Invention of Tradition, grupo de ensaios reunido e editado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, aborda a origem recente e muitas vezes deliberadamente manipuladora de muitas das tradições que hoje normalmente se julgam ser seculares. Apesar de o facto de se debruçar apenas sobre a Grã-Bretanha lhe limitar drasticamente o interesse e a universalidade, não deixa de ser uma leitura pertinente num país onde o manto da tradicionalidade e vetustez é tantas vezes pretexto para as mais boçais barbaridades. A estranha relação que se estabeleceu com o factor temporalidade encontra eco nos mais díspares e desconcertantes pormenores do quotidiano mesquinho, mas para a ilustrar bastará citar o exemplo do uso arbitrário e descontrolado do adjectivo “histórico”: por cá, temos momentos históricos a cada virar de esquina, a cada hastear de bandeira, e ninguém conseguirá demover o jornalista entusiasmado ou a popular embevecida da sua convicção de que, em 2648, o primeiro golo do Zequinha com a camisola do FC Fornos de Algodres e a inauguração dos lavabos públicos da Cova da Piedade serão acontecimentos ricamente narrados em qualquer compêndio de História que se preze.

A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector, não deixa grande espaço para comentários. É sublime, e ou se lê ou… não.