A importância de se chamar Ernest
Era uma vez um jovem americano muito bem apessoado que foi destacado com o exército americano para conduzir ambulâncias ou ser maqueiro, ou qualquer outra coisa relacionada com ligaduras e mercurocromo, na europeia e mediterrânica Itália. A razão deste destacamento foi a guerra que grassava pela Europa (a Grande Guerra, na altura, uma vez que os ingénuos não saberiam que haveria mais), e, uma vez a guerra finda e resolvida a contento de todos menos dos derrotados, dos defuntos, dos feridos, dos desmembrados e dos estropiados, o nosso herói embarcou numa longa vida de aventuras, romances e estroinices várias um pouco por todo o mundo. Esta épica existência talvez nunca conhecesse um fim, não se tivesse dado o caso de, num inesperado momento de lucidez, ter posto fim a si própria usando como ferramenta um rifle de caça.
Tudo estaria muito bem e esta biografia não interessaria nem ao Menino Jesus (que, pelos vistos, se interessa por muito pouca coisa), se o nome do sujeito não fosse Ernest Hemingway. É que o Ernest gostava de escrever, mas por um daqueles cruéis caprichos da mãe-natureza, fora dotado à nascença com tanto talento para a escrita como uma galinha amblíope e particularmente imbecil. Mas não era isso que iria travar o bom do Ernest, que não só persistiu nos seus atrozes esforços literários, como encontrou milhares, depois milhões de papalvos que acharam (ou foram induzidos a achar) que aquilo até era muito bom.
E é assim que hoje permanece ainda entre nós o culto desse vulto incontornável da literatura universal. Não sabia escrever nem uma lista de compras, tem a complexidade e beleza sintáctica de um redactor de manuais de instruções para torradeiras, os seus diálogos são estupidificantes de tão ocos e ridículos de tão pretensiosos, e não conhece outra forma de juntar orações que vá além do and (lerá o W. Bush muito Hemingway?), MAS, e aqui reside sempre o grande MAS, o Ernest Hemingway foi uma figura ímpar, larger than life, um bon vivant fascinante que arriscou incontáveis vezes a própria vida em safaris de caça-grossa em África, surtidas de pesca em alto-mar, heróicas touradas. Ou seja, no fundo devemos admirar este Ernest e a sua obra porque ele se tornou um Grande Homem através da tortura e massacre de animais indefesos, dando assim provas da sua incomparável virilidade, da sua grandiosidade e profundeza de espírito… é claro que um outro ponto de vista (curiosamente o meu), seria defender que o homem não passava de um asno com um talento para a escrita a pedir meças ao de uma Margarida Rebelo Pinto.
By the way, este assunto não surgiu por nenhuma razão em particular. As numerosas torturas que me auto-infligi, lendo penosamente livros(?) do Hemingway já estão temporalmente distantes, e hoje em dia já raramente tenho pesadelos por elas provocados. Mas com os Nine Inch Nails a debitarem-me milhentos decibéis de fúria na cabeça, alguém tinha de pagar a factura. E porque não o Ernest? Poucos o merecem tanto.